“O grito sofrido e indignado do povo Guarani e Kaiowá ecoou forte e nos fez sair em Caravana Ecumênica organizada pela Coordenadoria Ecumênica de Serviços – CESE, pelo Centro de Estudos Bíblicos – CEBI–MS e pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI/MS para visitar cidades brasileiras próximas à fronteira com o Paraguai, em áreas de retomada de terras pelos indígenas Guarani e Kaiowá.” Com estas palavras, apresenta-se a carta pastoral escrita pelos participantes à instância, entre eles a AIPRAL representada por seu presidente Rev. Wertson Brasil.
Crônica de Jacqueline Lopes, jornalista, DRT- 078-MS |
Durante três dias, a Caravana Ecumênica esteve na fronteira com o Paraguai, em áreas de retomada marcadas pela fome e violência do lado brasileiro nas cidades de Amambaí, Coronel Sapucaia (divisa com Capitan Bado) e Dourados. A comitiva reuniu representações de igrejas cristãs luteranas, anglicanas, presbiterianas, católicas, organizações ecumênicas, Conselho Nacional de Direitos Humanos, Conselho Indigenista Missionário e ativistas das causas indígenas de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Bahia.
A AIPRAL esteve nos dias 20, 21 e 22 de julho em uma das áreas mais violentas contra os povos indígenas do País, no estado de Mato Grosso do Sul, onde ao lado de lideranças religiosas que compõem o Fórum Ecumênico ACT Brasil (FEACT) levaram alimentos, roupas e cobertas para as famílias da etnia Guarani Kaiowá, que estão confinadas em áreas de retomada à espera da demarcação. A missão da Caravana Ecumênica foi encerrada na praça Antonio João, de Dourados, nesta sexta-feira 22 de julho, com ato ecumênico que reuniu cerca de 90 acadêmicos Guarani Kaiowá, da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).
Durante a missão em Mato Grosso do Sul, o Rev. Wertson Brasil, presidente da AIPRAL ouvius as lideranças e também falou sobre a importância de estar in loco para conhecer a realidade e levar solidariedade junto com a Caravana Ecumênica. “Assim que sair daqui vou produzir um relatório e enviar para a Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas. Os relatos do professor Guarani Kaiowá, Edimar Araújo e de todas as outras lideranças precisam ser ouvidos. As violações são inúmeras. Vimos crianças, idosos, mulheres e homens com medo da violência, mas que resistem com fé e esperança. Estão à mercê da sorte, vivendo embaixo de barraco sem o mínimo para sua dignidade”, disse Brasil, na área de retomada Joparã, em Coronel Sapucaia, na divisa com a cidade paraguaia de Capitan Bado, a 396 quilômetros da Capital.
Caravana Ecumênica X Realidade
A primeira visita da Caravana Ecumênica foi em Coronel Sapucaia, no Tekoha Joparã, uma área de retomada, ocupada este ano após uma morte de um jovem morador da Terra Indígena Taquaperi.
Num domingo, 22 de maio, o jovem Guarani Kaiowá Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, foi assassinado na fazenda após deixar a reserva Taquaperi. Alex morava na reserva e saiu para buscar lenha na área do entorno, quando foi vítima de tiros, teve o tórax cravejado de bala. O ataque partiu, segundo testemunhas, de um pistoleiro de motocicleta a serviço do fazendeiro. O corpo foi jogado do lado paraguaio e sepultado em outro município (Amambaí). No local, uma cruz mostra onde Alex caiu após os disparos. O documento do suspeito foi encontrado no local, mas até agora o crime não foi solucionado pela polícia.
Em protesto a comunidade ocupou a fazenda e lá, a área de retomada Joparã abriga cerca de 70 famílias que enfrentam a falta de alimentos, saneamento, transporte escolar entre outros problemas, como o medo já que o local não foi demarcado ainda. A comunidade e a esposa Jaqueline aguardam a transferência do corpo para ser sepultado no local onde foi morto. Na cultura Guarani Kaiowá, o indígena tem que ser enterrado ‘onde tomba’ – expressão usada nos conflitos.
Amambaí – Guapo’y
A Caravana esteve na cidade de Amambaí, no Território Guapoý, onde em menos de um mês dois indígenas Guarani Kaiowá foram assassinados em episódios marcado por tentativa de despejo ilegal feito pela Polícia Militar, com o aval do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, no dia 24 de junho, e também, numa emboscada, 14 de julho.
Alimentos foram também entregues á comunidade que reúne cerca de 80 pessoas. Como em todas as áreas de retomada, o governo federal proibiu transporte escolar, saneamento, política públicas em terras de disputa judicial.
Em Amambaí, as crianças e rezadores receberam a Caravana Ecumênica com música e celebração. Pintaram os rostos dos visitantes em sinal de boas vindas e proteção. As lideranças religiosas falaram sobre a fé, resignação e amor.
Os integrantes da Caravana Ecumênica sentiram a força e a esperança dos Guarani Kaiowá de Guapoý, na área marcada por tragédia. Um descampado de planície de terra vermelha, onde sobrevivem em barracos de lona com medo de outra ação da polícia, suspeita de atender interesses do fazendeiro.
O indígena Kaiowá Márcio Moreira, 35 anos, foi assassinado no dia 14, uma semana antes da chegada da Caravana Ecumênica ao local. Foi alvejado em uma construção do Residencial Analy, em Amambai. Vítima de emboscada, uma indígena relatou que Márcio era liderança importante do movimento de demarcação das terras Guapoy. “Ele tinha planos pra nóis. Foi trabalhar na cidade e perguntaram se ele era da retomada e mataram ele”, disse em lágrimas uma amiga Guarani Kaiowá, que por segurança terá o nome preservado.
Os indígenas disseram que a ação teria sido “um recado” para todos os outros moradores da área. Uma retaliação por terem ocupado o local e lá, permanecerem mesmo após a tentativa de expulsão, ilegal (Governo do Estado alegou o crime de esbulho para a ação). Dias antes, de ser morto, Marcio gravou um vídeo dizendo que não sairia da fazenda.
A filmagem foi em frente ao local onde, Vitor Fernandes, de 42 anos, rezador foi enterrado. Ele, tinha deficiência em uma das pernas e não conseguiu correr quando a PM chegou aos tiros no local, segundo testemunhas. Vítor era Guarani Kaiowá. Foi morto no dia 24 junho pela Polícia Militar. Duas mil pessoas estiveram no local para o sepultamento, que só pôde acontecer, ‘onde Vítor tombou’, após uma ação da Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal.
‘Essa terra que chama fazenda é terra indígena. Estamos aqui na retomada dessa fazenda que é terra indígena. E por conta do nosso irmão, estar enterrado aqui, iremos permanecer. Por esse motivo.’. Foi essa a frase de Márcio, antes de ser morto na emboscada, no vídeo em referência ao Vítor.
Dourados X Aratikuty
Horas antes da finalização da missão com o ato ecumênico na principal praça pública de Dourados, as lideranças religiosas levaram também solidariedade para as famílias da área de retomada Aratikuty, ao lado da terra indígena Bororó, que junto com a Jaguapiru, reúnem em confinamento cerca de 17 mil indígenas em 3 mil hectares – a maior reserva urbana do País.
Vizinha de área nobre da cidade, conhecida como representante do agronegócio no Estado, com apenas a rodovia MS-156, a separando da área de retomada Aratikuty, os problemas dos Guarani Kaiowá são relatados por mulheres e homens, que não têm água potável para oferecer aos seus filhos e filhas e vivem ali embaixo de barracos a poucos metros de duas caixas d’água gigantes da SANESUL (Empresa de Saneamento de MS), que abastece o outro lado de Dourados.
Tendo os cães como guardiões, as mulheres relatam de homens, seguranças da empresa particular Miragem, proibem os indígenas de transitarem na redondeza, os ameaçam constantemente para que deixem a área, que seria de japoneses, e além disso, fazem da comunidade que vive numa favela urbana alvo de constante pavor. São situações de assédio enfrentadas pelas mulheres e ameaças, relatadas pelas crianças, que têm o medo como parte do cotidiano. Durante noites, as famílias são alvo de uma luz forte que não as deixam dormir, uma forma de tortura-las, segundo relatos aos líderes religiosos.
No caso da área de retomada, em Dourados, não há dificuldade para chegar até o local, diferente de Coronel Sapucaia e Amambaí, que o acesso é feito por estradas de chão. E mesmo, perto da infraestrutura urbana, não há condições de segurança, faltam alimentos, são proibidos de trafegar para ir até o comércio da região e sobrevivem sem o mínimo de saneamento básico pela falta de água potável, uma reivindicação também dos povos indígenas de toda a reserva de Dourados (Jaguapiru e Bororó).
Caravana X Apelo
A Caravana Ecumênica foi aberta em Campo Grande, no dia 20, na FETEMS (Federação dos Trabalhadores em Educação) com a celebração de uma mistíca de boas vindas ao grupo, acolhido como importante porta-voz dos povos indígenas.
O ato ecumêncio em Dourados foi finalizado também com o desabafo das sobreviventes e sobreviventes Guarani Kaiowá sendo uma dessas vozes, a da liderança Kaiowá Valdelice Veron, de Juti:”A tropa de choque vem atacar nossas aldeias, queimar nossos poucos pertences, atirar em nossas crianças, nos jovens, nas mulheres, homens, idosos. Acabar com nossas coisas, nossas casas de reza, nossos cantos, nossas pinturas”. Valdelice clamou por ajuda para que a demarcação das terras indígenas sejam feitas e à imprensa relatou que a ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental à Vida, foi ingressada ao Tribunal Penal Internacional, em Bruxelas, ligada à ONU (Organização das Nações Unidas), já foi acionada. “O último socorro quando já não tem mais jeito”, disse ela.
A Caravana Ecumênica levará todas as informações para que ações sejam feitas dentro e fora do Brasil em defesa dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul.
Fotos: Giovanni Coletti |